Conto: Amor e Fúria
Publicado em 03/08/2020 | 10:37 - 1461

O ano é 2080, dia 20 de Outubro, aniversário de Nairit Sagun, gênio indiano que descobriu um meio de conectar seu cérebro a um computador, não teve acesso a inúmeras informações como diziam as mais otimistas mentes, mas com a ajuda de vários processadores interligados, aumentou muito sua capacidade e velocidade de raciocínio e desenvolveu o hábito de analisar várias coisas simultaneamente. Isso aliado à uma curiosidade intrínseca e sua paixão por robótica, o levou a viabilizar a nanotecnologia, através de processamento óptico efetuado via cristais. Com isso a tecnologia mundial deu um salto gigante, no começo foram os exoesqueletos ligados externamente ao cérebro, depois viraram armaduras usadas para combate, até finalmente chegar às próteses e quase todos os órgãos do corpo humano. Algumas pesquisas do Dr. Nairit foram banidas, outras roubadas, como a teoria da viagem no tempo ou a revitalização de cadáveres. Alberto, um empresário bem sucedido, teve sua família brutalmente assassinada há muitos anos. Graças aos avanços da medicina que prolongaram sua vida, ainda parece jovem, mesmo com mais de um século de idade. Desiludido com as mulheres, que pareciam apenas procurar nele um meio de se sustentar, resolveu se envolver com um homem, um transformista que fazia shows em boates na região central de São Paulo, cidade que se tornou uma megalópole. Após alguns meses, desistiu de Cláudio, pois este era muito possessivo, ciumento, até violento. Quando Alberto terminou o relacionamento com Cláudio, este saiu de casa sem dizer uma palavra. Desapareceu por alguns dias, reaparecendo em uma quinta-feira à noite. Tentou abrir a porta da casa de Alberto, mas a chave não funcionava mais.
- Como você pode fazer isso comigo? – Gritava Cláudio. – Já trocou a fechadura? – Perguntava enquanto esmurrava a porta.
Alberto ouvia os gritos e barulhos deitado em sua cama. Não queria confusão, não queria uma cena. Ouviu quando Cláudio parou de bater na porta da frente. Ficou alguns minutos deitado, em completo silêncio, quando ouviu um barulho de passos bem leves no corredor que levava aos quartos. Voltou toda sua atenção à porta e resolveu pegar uma arma que guardava na gaveta do criado mudo ao lado da sua cama. Mas só teve tempo de abrir a gaveta, quando a porta foi aberta com um chute de Cláudio. - Você vai pagar caro. Se não for meu, não será de mais ninguém. – Gritou ele da porta. Com uma faca de cozinha na mão, grande o suficiente para atravessar o corpo de Alberto. Cláudio pulou para cima de Alberto, com a faca na frente, e este mal teve tempo de se desviar, rolando para o lado. Cláudio bateu com o cotovelo na nuca do Alberto, que caiu da cama e se levantou. Cláudio voltou a atacar, Alberto desviava a faca com um travesseiro que pegou na cama, até que conseguiu fazer o outro derrubar a faca. Durante algum tempo, lutaram ferozmente de socos e chutes, até ficarem bem cansados e machucados. Estavam cada um de um lado da cama, Cláudio percebeu que estava pisando na faca, se abaixou e pegou-a novamente. Alberto percebendo o perigo, foi até o criado mudo e pegou sua arma, ao se virar se deparou com Cláudio quase em cima dele. Não teve dúvidas e puxou o gatilho. Disparou as seis balas sobre o ex companheiro. Fugiu de casa deixando o corpo no quarto.

Vinte e seis de Dezembro de 2013, no próximo dia depois do natal. Alberto, um jovem e promissor empresário saía de férias com a família, Sabrina, a esposa com a qual estava casado há doze anos, Laura, sua filha de onze anos e Felipe, seu filho de quatro anos. Haviam alugado uma casa em Bertioga, litoral norte de São Paulo, em um local ermo, mas a casa tinha segurança, grade nas janelas, porta de madeira maciça, muros altos. A casa ficava a quase duzentos metros da praia, dava para ouvir as ondas durante a noite. Alberto pretendia passar o réveillon com a família em uma praia próxima, muito badalada na região. Seu casamento não estava muito bem, por isso quis fazer essa viagem em família. Os negócios tomavam muito do seu tempo, fazendo-o se tornar um marido e pai ausente. Na noite de natal, Alberto foi com a família cear com seus pais, irmãos e tios. Grande família, mas também muito desagradável. Todos ficavam pedindo dinheiro emprestado ou falando sobre doenças e morte. Foi por isso que logo após a meia noite, Alberto escapou da casa e foi beber uma cerveja em um pub que conhecia ali perto. Quase acabando a primeira cerveja, percebeu que havia uma mulher sentada em uma mesa não muito próxima, que não tirava os olhos dele. Era uma loira linda, grandes olhos azuis, cabelos cacheados, parecendo uma boneca de tão perfeita. Vestia uma blusa ou saia vermelha colada ao corpo, marcando os seios em um generoso decote. Alberto não conseguiu resistir e começou a olhar de volta. Alguns sorrisos trocados e ele foi até a mesa. Conversaram um pouco, ela se chamava Cláudia, era secretária executiva de uma empresa ali mesmo na capital, tinha 26 anos, solteira, solitária. Mas não deixou as coisas avançarem. Trocaram telefone e ela se foi. Tinha uma festa para retornar. Desde esse dia, Alberto não tirava Cláudia da cabeça. Ela lhe parecia assustadoramente conhecida. Com o telefone dela gravado no celular, planejava contratá-la como secretária dele, assim que voltasse de viagem. Chegaram no final da tarde, se instalaram, foram até a cidade mais próxima para comer algo e comprar suprimentos. No outro dia cedo, Sabrina, Laura e Felipe foram à praia, deixando Alberto dormir até mais tarde. Alberto acordou assustado, sonhou que um homem entrou na casa e começou a perseguir sua família. Ouviu o barulho de algo caindo, como uma panela na cozinha.
- Sabrina! – Gritou – Já acordou?
Silêncio. Pouco depois Alberto ouviu o barulho de uma porta sendo fechada. Olhou para o lado e viu um papel dobrado. Era um bilhete, dizia: “Alberto, vou com o Felipe na praia aqui perto, se acordar antes da gente voltar, venha nos encontrar. Beijos, Sabrina.”. Alberto se levantou, colocou uma bermuda, trancou a casa toda e foi ao encontro da família. Estava imaginando se os barulhos que ouviu foram dentro da sua casa ou algum vizinho, apesar de não ter visto nenhuma casa perto. Talvez fosse algum veículo ou uma carroça que passou na frente. Ainda não chegara à metade da manhã quando localizou sua família na beira do mar, Laura deitada na areia, Felipe pulando suas primeiras ondas, Sabrina sentada perto, apenas tomando conta do filho. Alberto pensou como seria se fosse Claudia ali, mas logo esse pensamento foi varrido de sua mente, pois quando o filho percebeu o pai, gritou “PAI!” e foi correndo ao seu encontro. Ele pegou o garoto no colo e foi para junto de Sabrina e Laura. Alberto esqueceu de Cláudia, das empresas, dos problemas no casamento, do barulho que ouviu mais cedo, dos parentes que viviam pedindo dinheiro. Para ele havia apenas sua família. Foi o melhor dia de sua vida, sabia que iria recordar aquele dia para sempre. Comeram sanduiches que Sabrina fez antes de sair de casa pela manhã e só retornaram no final da tarde. O sentimento era de reconciliação. A noite prometia.
Despreocupados com o mundo, Alberto e Sabrina abriram o portão e Felipe saiu correndo para a casa carregando seu baldinho de areia, entrou porta adentro sem fazer barulho. Foi aí que Alberto percebeu que a porta estava aberta. Ele tinha trancado ao sair naquela manhã. - Felipe! – Gritou e correu para casa, deixando Sabrina atônita para trás, mas ela correu logo depois.
– Felipe! Gritou novamente ao entrar na casa e acender a luz da sala, expulsando a penumbra que tomava conta do imóvel.
Silêncio.
- O que aconteceu? Cadê o Felipe? – Perguntou Sabrina ao chegar logo atrás de Alberto. Laura entrou também, se agarrando na canga da mãe.
- Deixei a casa trancada quando saí, como o Felipe entrou?
- Felipe! – Gritou Sabrina. Logo todos estavam chamando pelo garoto, mas sem resposta. Se dividiram, Sabrina e Laura foram para o segundo andar, olhar nos quartos, Alberto procurou nos quartos do andar de baixo e nos aposentos anexos. A casa era grande, com vários quartos, geralmente alugados para excursões, havia vários cômodos espalhados, como sala de jogos, dispensas, depósitos, etc. Felipe poderia estar se escondendo em qualquer um deles. As janelas possuíam grades, pois o local ermo era visado por ladrões da região quando não era alta temporada. As portas de madeira maciça, foram projetadas para impedir invasores, tornando a casa bem segura. Todos ouviram o barulho da porta batendo violentamente no batente ao se fechar, mas ninguém se preocupou em ir checar, pois um achou que era o outro fechando para Felipe não sair sem eles verem. Em poucos minutos, voltaram a se encontrar na sala da entrada. - Achou ele? - Não. E você? Alberto foi checar o lado de fora da casa mais uma vez, mas descobriu a porta trancada, sem chave pendurada na fechadura. Tentou abrir com força, mas esta não cedeu nem um milímetro. Foi quando ouviram um grito. Percebeu que estavam apenas ele e Sabrina na sala.
- Laura! O grito veio do segundo andar. O casal subiu os degraus da escada em espiral, gritando pela filha.
– Laura! – O grito se repetiu, parecia vir do último quarto. Alberto abriu a porta com ímpeto e encontrou a filha sentada na beira da cama olhando fixamente para a parede. Agarrou a menina e a tirou do quarto. Logo Sabrina entrou para ver o que tinha acontecido, e encontrou a parede manchada e uma mensagem escrita com sangue. “Você me levou um pedaço da alma, agora é minha vez.” Sabrina saiu do quarto e verificou se a filha estava bem. Levaram a menina para o quarto dela, verificaram se estava vazio, pediram para ela trancar a porta por dentro e saíram novamente para procurar Felipe. Vasculharam a casa novamente, não encontraram nada de diferente. Alberto tornou a tentar abrir a porta da frente, sem sucesso. Talvez devesse procurar uma ferramenta para arrombar a porta. Sabrina também tentou, nem a fechadura nem a porta deram sinal que poderiam ceder. Um barulho alto de madeira se quebrando e um grito agudo rápido. O casal correu para o quarto que deixaram a filha. Chegando ao topo da escada, já viram a porta entreaberta. A fechadura estava quebrada, como se alguém houvesse chutado a porta e quebrado o batente. O quarto estava vazio.
- Laura! Felipe! – Começaram a gritar, procurando novamente pela casa toda.
Juntos tentaram abrir mais uma vez a porta da frente e não conseguiram, quando ouviram um barulho vindo da cozinha. A cozinha era grande, quase industrial, feita para alimentar grande quantidade de pessoas. Quando o casal entrou pela porta, achou uma mulher loira, com roupas pretas coladas no corpo, do outro lado do aposento.
- Cláudia? – Perguntou Alberto.
- Quem é esse cara? – Falou Sabrina olhando para Cláudia.
- Como assim, “cara”? É uma mulher.
- Com um gogó daquele tamanho?
Foi só então que Alberto percebeu. Aquele Pomo de Adão. Era um homem. Alberto ficou atraído por um homem. Não podia acreditar nisso.
- Betinho. – Disse ela. – Eu te amei tanto. Como pôde me deixar?
- Do que ele está falando? – Perguntou Sabrina.
- Não sei. – Respondeu ele.
Cláudia atirou a faca que levava nas mãos, Alberto se desviou por pouco. A faca se enterrou mais da metade na porta de madeira. O casal correu de volta para a sala. Deram a volta até um depósito que ficava cheio de cadeiras de praia e guarda-sol, pretendiam se esconder ali, mas ao abrirem a porta, encontraram os dois filhos. Pendiam na ponta de uma corda, amarrada no ventilador. Enforcados.
- Não! – Gritou Sabrina, correu para tirar os filhos dali. Alberto entrou e fechou a porta, colocou uma cadeira segurando a maçaneta e foi ajudar a esposa. Desamarraram-nos da corda e deitaram suas cabeças no colo de Sabrina. Mas logo a porta começou a ser esmurrada. Eram golpes muito mais fortes que os de uma pessoa normal. Logo uma lasca se soltou no meio da porta. Alberto arrastou um armário velho para bloquear a porta, logo os golpes pararam.
- Precisamos sair daqui. Vamos pedir ajuda. – Disse Alberto.
- Não vou deixar nosso filhos aqui. – Respondeu Sabrina.
- Nossos telefones estão no quarto lá em cima, vou tentar alcançá-los e chamar a polícia. Tranque a porta quando eu sair.
Sabrina não respondeu, mas Alberto tinha certeza que ela entendeu. Ele arrastou o armário de volta, olhou pela fresta e não viu ninguém.
– Estou indo. – Sussurrou. E saiu ágil para a escada. Não encontrou Cláudia no caminho, mas encontrou uma raquete de madeira, pegou e foi até o quarto. Encontrou os celulares, mas estavam abertos e sem as baterias. Tentou o telefone fixo que estava ao lado da cama, mas não tinha linha. Pegou a raquete e voltou para buscar Sabrina. Chegando ao depósito, encontrou a porta semi aberta, como havia deixado ao sair. Entrou e encontrou Sabrina com a cabeça baixa, chorando junto aos corpos dos filhos. Aproximou-se e tocou de leve em seu ombro. O corpo dela pendeu para o lado, caindo no chão. Então Alberto notou o sangue escorrendo pela garganta, um corte que ia quase de uma orelha à outra, deixando muita carne à mostra. Alberto perdeu a razão. Seu mundo foi tirado debaixo dos seus pés. Saiu do depósito com a raquete em mãos, gritando por Cláudia.
- Cadê você sua vagabunda? Você quer um pouco do Betinho? Nunca mais vai conseguir se esconder de mim. Alberto encontrou Cláudia na cozinha. Não pensou em nada e pulou com a raquete em punho. Acertou o rosto de Cláudia com toda sua força, mas só provocou um arranhão. Cláudia deu um soco no peito de Alberto, fazendo ele voar longe. Logo Alberto achou uma faca em cima de uma bancada e voltou a atacar Cláudia, esta se defendia com o braço, que quando foi cortado, revelou um misto de cabos, arames, engrenagens e luzes por baixo da pele. Cláudia era muito rápida e forte, estava confiante que mataria Alberto, quando foi surpreendida por uma facada embaixo do seio esquerdo. Como não tinha o coração, aquela área era mais desprotegida, Alberto conseguiu enfiar a faca até o cabo. Cláudia, pega de surpresa, ficou sem reação enquanto Alberto puxava a faca e se preparava para atacar novamente. Refeita do susto, Cláudia deu um empurrão em Alberto jogando ele longe novamente, e fugiu para a sala. Alberto correu atrás dela assim que conseguiu se levantar, mas encontrou a porta aberta. Saiu da casa a tempo de vê-la pulando o muro de cerca viva, em direção à mata. Pulou logo atrás e viu um clarão logo à frente. Ao chegar ao local, encontrou algumas folhas queimadas, um pouco de sangue no chão e nem sinal de Cláudia.

Em um porão de uma clínica clandestina, em 2080, um clarão repentino anunciou a chegada de uma mulher ferida. Com sangue manchando sua roupa, ela estava debilitada, precisava de ajuda. A visão começou a falhar, mas viu quando um homem saiu de um canto escuro em sua direção e levantou uma arma em sua direção.
- Filho da puta! – A voz de Alberto se fez ouvir. Deu oito tiros em Cláudia. Todos na cabeça. Depois ainda se ouvia os cliques da arma tentando disparar as balas que se acabaram. Cláudio sobreviveu aos tiros de Alberto, viu ele fugindo do quarto. Estava morrendo. Pegou o celular e ligou para um amigo. Um médico que perdera a licença há muitos anos, agora atuando na clandestinidade e no mercado negro. Usou todas suas economias e conseguiu se salvar, tendo vários órgãos e membros substituídos por partes mecânicas no processo. Seu amigo tinha apenas partes femininas de ciborgue, conhecendo o amigo, achou que ele iria até gostar, e acabou modificando outras partes do corpo para ele parecer mulher. Após alguns dias, ele se recuperou, então bolou um plano para se vingar de Alberto, conseguindo convencer um mafioso a ajuda-lo a voltar no tempo. O que Cláudio não sabia, era que Alberto ficou sabendo dos planos dele, logo ligou o que aconteceu tantos anos atrás. Com vastos recursos à disposição, Alberto subornou o mafioso e ficou sabendo da data e local programados para o retorno de Cláudio, então esperou para ter a tão aguardada vingança.


Comentários
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03/08/2020 às 10:43
Olá, Fernando.
Muito bom o seu texto (conto), parabéns e continue a escrever, pois tem um escritor aí em você.
Marcos Macedo

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